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Desconhecidas

Sobre as mulheres não vistas, invisíveis nos seus detalhes e potências
Foto: Pixabay

Seis horas da manhã e ela já estava na estrada a caminho do trabalho: não tinha burro, nem cavalo, apenas seus chinelos gastos e um dos seus três vestidos a lhe acompanhar. Conforme percorria os quatro quilômetros que a separavam da fazenda onde cozinhava, de segunda a sábado, ia pensando nos pratos do dia: arroz, feijão, carne de porco na banha ou, quem sabe, arroz, feijão, chuchu picadinho e galinha. A patroa iria instruí-la, com certeza, mas era bom já ir pensando. Aquela mulher caminhante, magra, de pele riscada e cabelos enevoados, trabalhava para colocar comida na própria mesa. Viúva de um amor bem-vivido, sem filhos, tinha duas alegrias na vida: rezar para Nossa Senhora e escrever poesia em um caderninho que comprara com muito esforço. Com os dedos grossos e calejados, ela às vezes economizava as palavras para não gastar o lápis, mas cada verso estava memorizado no coração. Estudou pouco, mas nunca perdeu o gosto pelas letras. Se não tinha meios tradicionais para viver sua literatura, escrevia no chão batido com graveto de árvore. Um dia ela morreria sem que ninguém tivesse lido seus versos ou ousasse pensar que ela era uma poeta. Não dessas que publicam livros e são entrevistadas nos jornais, mas as que fazem dos seus próprios desertos, jardins

Assim como a voz que nunca cantou para uma plateia, pois não sabia sobre a sua própria potência. Divertida, generosa e rechonchuda, alvejou tantas roupas da cidade que poderia ter sido chamada de Branca, mas poucos sabiam sequer o seu nome verdadeiro. Deixavam em seu lar modesto as trouxas de roupas sujas e, voltavam depois, com o pagamento. Essa gente mal sabia que retornava para casa, com roupa limpa de alma cantada. A lavadeira, com voz de cantora de ópera e apaixonada pelas famosas do rádio, era corajosa, era mãe, era mulher, mas sobretudo, era alma de passarinho.

Feito a mulher que subia oito degraus, todo santo dia, apenas para dar bom dia à menina recém-chegada ao escritório. Ela sabia sobre a importância de receber um sorriso em ambientes estranhos, assim como também conhecia, de cor e salteado, o sentimento de não acolhimento. Após o cumprimento, voltava para a sua sala, ligava o computador e desfiava o dia entre e-mails, ligações e abacaxis para serem descascados: egos, prazos, projetos e resultados compunham a rotina de quem, ao final do dia, voltava para uma casa cheia de gente e nenhum sorriso. 

Assim como as Joanas, Marias, Carolinas, Conceições, Amandas, Lourdes, Teresas, Amélias, Sônias e Cristinas: as mulheres não vistas, invisíveis nos seus detalhes e potências, reduzidas a recortes. Por isso, é necessário ser morada da poesia, voz que ecoa no quintal ou bom dia que aquece, por mais que eles não alcancem o coração do outro. A paz que importa começa em nós. 


Copyright © 2021 I Cris Mendonça. Sobre as mulheres desconhecidas, só há uma coisa que importa. Todos os direitos reservados.


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