memórias afetivas

Futebol e família: memórias em campo

Sobre um avô e um neto, um técnico e um jogador
Foto: istock

O jogador de futebol, devidamente trajado, pega seu ônibus às 8h40 da manhã na rua Adelina Rosa Campos, altura do número 88. Uniforme amarelo com detalhes verdes, limpo de grama e lama, meiões brancos, chuteiras pretas e cabelos levemente molhados, penteados da esquerda para direita.
 
Seu técnico o acompanha. Tem cabelos brancos, esticados da testa para a nuca. Rosto salpicado daquelas pintas que surgem após muitos anos de Sol. Costas curvas, olhar de quem já viveu muito e sabe o fim de quase tudo. Traja camisa de malha, sempre cinza ou azul-claro, bermuda de quem já não se obriga nem às calças, nem aos outros.

A dupla, talvez promessa da Copa do Mundo 2034, senta-se lado a lado. Intimidade de quem já se conhece há quase uma década.

Falam de uma mulher em duas: a filha, juíza fora de campo; a mãe, massagista de coração. Citam o café da manhã e a escola. Combinam táticas: as da vida e as do jogo.

O ônibus vira a esquina, a dupla se inclina à esquerda. Próxima parada é na frente da quadra. Descem. Não sem antes espiar pela janela e verificarem como estão os outros jogadores. Àquela hora, dia claro, campo cheio.
 
Ao sair do ônibus, mudam os personagens. Eles são outros e os vejo caminhar pela calçada.

Lá se vai o avô aposentado com os seus chinelos de couro. Anda sem pressa, não bate mais ponto, camisa de botão só em casamento ou velório. Segue calmo logo atrás do pequeno futebolista. Esse que eu, suponho, certamente se lembrará desse senhor que o acompanha com um lance certo de amor, um Mineirão inteiro de saudade!

O imagino contando para alguém que ainda mora no seu futuro: 
_Toda segunda e quarta-feira, meu "vô" me levava para a quadra. Era lá perto da casa dos meus pais, não tão perto que desse para ir a pé. Íamos de ônibus, o velhinho não gostava de dirigir. Na quadra, sentava na arquibancada onde não existia sequer uma sombra. Quarava no Sol até suar, não perdia um lance meu! Algumas babás acompanhavam os meus colegas, pais ou mães, somente se estivessem de férias; os moleques mais velhos iam sozinhos. Meu avô, não. Fazia questão! Minha mãe dizia que "ele gostava de se ocupar". Porém, eu hoje adulto e um pouco mais sabido, sei que ele ia comigo porque me amava daquele jeito bonito de quem agradece à vida por ter tempo e saber como é valiosa a presença. Nós dois: nas aulinhas de futebol, nos jogos acompanhados na TV e nos lances revistos na internet. Fomos ao estádio poucas vezes porque, para ele, “jogo pra valer” era só mesmo o que eu fazia no campinho do bairro. Meu avô, para mim, era o Brasil vencendo uma Copa do Mundo. 
 


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