memórias familiares

No tempo dos três pães

Uma história sobre uma mãe
Foto: Imagem gerada por IA

“Todo dia ela faz tudo sempre igual” tocou no rádio naquela manhã de domingo, e ela quis fugir. Correr, desesperadamente, para o passado. Alcançar novamente aqueles dias de tarefas previsíveis, onde morava uma paz que ela nunca mais sentiria na vida.

Três pães, dois copos de leite e um de café. As crianças sentadas à mesa comiam, discutiam e brincavam, enquanto ela andava pela casa — cabelos crespos presos num coque, camisa larga e tênis All Star preto — a recolher a bolsa e as mochilas para logo saírem de casa. De mãos dadas com os filhos, entrava no elevador, fazia cafuné na cabeça de um e do outro, limpava a migalha de pão grudada no cantinho da boca do mais novo. Na garagem, abria a porta do carro, mandava-os subir e prendia o cinto de segurança deles, sempre acompanhada dos resmungos dos meninos. Deixava-os na escola e, logo em seguida, ia para o trabalho. De segunda a sexta, tudo era igual: os cafés, as manhãs, o trabalho no Departamento Pessoal e a volta para o lar, já no final do dia. Exausta, mas conformada com as missões noturnas: o dever escolar das crianças e a ligação por vídeo do ex-marido, que havia aceitado um bom emprego em outro estado, garantindo, assim, uma mistura perigosa: ausência paterna e uma pensão que, supostamente, compensasse a falta dele.

Porém, os sábados chegavam. O dia de lazer da família, dos shorts e blusas coloridas, muito protetor solar e bonezinhos, que, de uma semana para outra, pareciam não caber mais naquelas cabecinhas. Dia de clube, refrigerante e empadinha de frango. E dela, a dizer, pela milésima vez aos filhos: “Mamãe não escuta daqui!”, enquanto apontava o dedo para o ouvido esquerdo, olhando firme para eles.

O mesmo lado do coração, o mesmo lado de onde veio um carro que mudaria a vida deles para sempre e que ela mencionaria, no leito de morte, aos 87 anos. O mais velho caminhava à frente, enquanto ela carregava o menor nos braços. Distância suficiente para que aquele carro vermelho invadisse a calçada, rápido e brutal, levando o seu primeiro menino. O “homenzinho” da casa, como ela gostava de dizer.

Um zunido longo e comprido invadiu a cabeça dela. Um barulho que durou sete anos, três dias e cinco horas. Sentiu-se cega e surda, agora dos dois ouvidos. Alguém tirou o menor do colo dela. Pessoas, ambulância, hospital, todos dizendo que era tarde demais. Como tarde demais foram todos os anos que se seguiram. Os cabelos começaram a cair, a balança parecia apenas subtrair, e o choro escapava diariamente no banho da noite para que o pequeno não ouvisse.

Pela manhã, dois pães, um copo de leite e um de café. À noite, apenas um dever de casa. E, de volta à cidade, o ex-marido, que retornara para dividir a guarda do caçula, que ia mal na escola e, vez ou outra, mordia os coleguinhas da sala.

Um buraco imenso tinha sido cavado no peito daquela mulher, que nunca mais foi a um clube e sentia o estômago embrulhar cada vez que avistava um carro vermelho. Que ocupava os domingos em que estava sozinha participando de ações voluntárias com crianças de orfanatos, vendo, em cada um deles, o seu filho mais velho. A mulher que, em uma terça-feira, às 18h, na porta da escola, olhou para o caçula e perguntou: “Seu irmão ainda não saiu?”, pois apenas 35 dias haviam se passado desde aquele momento, e ela entendeu que precisava de apoio (psicológico e afetivo) para que aqueles três pães que, eram agora dois, fizessem o milagre da multiplicação.


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Comentários
Teresa Costa
O luto de uma mãe é sempre um processo doloroso e dá nó na garganta!
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