memória afetiva

Nos olhos do meu avô, a transparência de um rio calmo

Foto: Cris Mendonça/Arquivo pessoal

Um ano e meio de pandemia, um ano e meio sem encontrar meus avós maternos: seu Lissinho, já com seus 94 anos e, minha avó Maria, com seus 87. Nestes longos dias de distância deles, eu vivi o home office, o pânico, a crise de ansiedade, as saudades, as saídas não recomendadas e o medo de perder aqueles que amo. Eu e milhares de outras pessoas mundo afora.  

Porém, as demoradas duas doses da vacina, finalmente, vieram para cada um dos meus avós e me dei o direito de ir visita-los. A saudade me levou para um longo papo com meu avô, como há muito tempo nós dois não tínhamos, sentados do lado de fora da velha casa que viu minha mãe crescer. 

_Nasci em 1927_ele disse_ com seu olhar nonagenário.

A partir da idade dele, nossa prosa fluiu. Perdeu a mãe com três anos de idade e me confessou nunca ter visto uma foto dela na vida.  Aos sete, já trabalhava na roça tocando gado para os vizinhos. Um tempo depois, aprendeu a plantar e foi trabalhar por conta própria vendendo milho para um sujeito da cidade, que ele chamou de Zé Miguer. Arar, plantar, colher e criar foram verbos que meu avô conjugou durante toda a vida no seu ofício de homem do campo.  

Nesse interim, contou-me sobre o pai que morrera com apenas 64 anos de uma doença no estômago, falou do irmão que havia se metido em briga e morrera sem filhos, que nunca viu assombração, mas diziam por aí que a sogra dele, depois de morta, apareceu para uma vizinha fazendo “um tanto de recomendação”. 

Perguntei como ele havia conhecido minha avó e, para fazer graça, me disse:
_Essa muié que ta aí?_perguntou, com uma risada, apontado para minha querida avó Maria. A mulher que, naquele momento, caminhava pelo quintal com uma blusa de linha tão branca quanto os cabelos da cabeça dela. 

Respondi, brincando, que ela era a avó que eu conhecia e insisti na pergunta. Então me contou que, antigamente, todo mundo fazia baile na roça, dançando ao som de uma sanfona e, foi assim, que ele a conheceu. Um namoro sem tocar, sequer, na mão, e que se transformou em um casamento de seis décadas. 

Uma pequena pausa depois, meu velho avô aponta para a casa e me diz orgulhoso:
_Eu fiz 15 mili tijolo para construir essa casa. Ali naquele lugar onde ta plantada as mandioca. Tirei barro de lá um tempão, depois passei pra outro lugar, pois o barro não era bão pra fazer tijolo.  

Desejei pegar um tijolo daquela casa e colocá-lo em um quadro só para nunca me esquecer do sangue de quem carrego. Saber que cada pinta de sol que meu avô agricultor carrega nos braços diz muito sobre ele, sobre homens quase centenários que carregam em si outras formas de viver. Gente de um Brasil profundo, rural, que produzia desde a pouca roupa que tinha ao próprio alimento. Um povo que não teve escola, mas é detentor de uma sabedoria ancestral sobre respeito, fé e trabalho. 

Foram tantos os meus domingos ao lado dele, o observando sempre silencioso, olhando para longe e pensando na vida. Uma quietude que chamava a minha atenção, afinal, ele era o pai de uma família de três homens e nove mulheres, todas elas falantes e cheias de atitude, tal como a minha avó. Seu Lissinho sempre me pareceu ser o silêncio que se achega quando todo mundo deseja repouso

Nos velhos olhos dele, eu vejo a transparência de um rio que corre calmo. Uma vida se alimentado com comida plantada pelas próprias mãos, bebendo água do poço e sendo sereno por vocação. Entre as prosas soltas, me diz rindo que deseja viver até os 100... E é o que desejamos! Nestes tempos de tantas notícias ruins, todo bom encontro soa como paz! Que sorte a minha!

Copyright © 2021 I Cris Mendonça. Nos olhos do meu avô, a transparência de um rio calmo. Todos os direitos reservados.


Comentários
Jonas Pierre
Excelente texto sobre o grande vô Licinho. Excelente conhecer sua história. Show
Cecília Coelho
Que texto emocionante! E que sensibilidade para descrever uma vida tão linda e marcante como a de sua avô. Um ser humano com H maiúsculo. Obg por dividir o seu o avô conosco pelos seus olhos.
Genilson Ferreira de Oliveira
Que texto lindo, que licença poética. Nos enchem a alma de uma paz e nos faz viajar nos olhos serenos da idade. Não tiveram estudo porém aprenderam a ter respeito, fé e muita dignidade. Precisamos de mais gente como seu avô.
Julio Brescia
Viajei nessa narrativa deliciosa. Deu vontade de conhecer o Seu Lissinho e a sua casa. Gosto muito de conversar com pessoas que tem histórias pra contar. É prosa boa.
Lilian
Linda a história me emocionei ao ler cada frase, e ansiosa para ver o final. Parabéns pelo respeito e amor ao seus avós
Rocatefe
Bonita história, e que riqueza você valorizar e ter a oportunidade da troca de experiências das gerações
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