memórias

A primeira vez de muitas outras vezes

O bonito da vida é que até o final dela continuaremos a nos surpreender...
Foto: Sean Wareing/Pixabay CC

Uma rua sem saída, uma bicicleta surrada de manoplas verde-limão, e três menininhas dispostas a brincar. Era o cenário ideal para que uma delas aprendesse a pedalar. E, enquanto a aprendiz cambaleava em cima da magrela, as outras garotas a acompanhavam com o honesto propósito de segurá-la, caso caísse. Nos poucos metros que tinham, corriam para um lado e outro, sem saber que aquele divertimento era uma memória que duraria para sempre.

Até hoje, trinta e tantos anos depois, ela ainda se lembra das vozes daquela tarde infantil. 
_Você conseguiu! 
_Andou “um tanto assim” sem colocar os pés no chão!

O fato é que alguns aprendizados marcam as nossas vidas e, com eles, a memória de quem nos ensinou. A professora que nos alfabetizou ainda parece caminhar pelo corredor formado entre as carteiras. Ali, altiva, parecia resplandecer todo o conhecimento do universo quando nos contava que as vogais "a" e "i" formam a palavrinha “Ai”. O pai ou a mãe que nos segurou pela barriga sobre as águas, mandando que batêssemos os pés e as mãos, para assim, poder nadar. A tia que nos mostrou o relógio e nos informou como funcionava o esquema das horas, sem nunca conseguir nos dizer quão misterioso e inexplicável é o passar do tempo. A prima que disse "Papai Noel não existe", deixando assim, o Natal um pouco sem graça. A adolescente que pegou o colega pela gola e mostrou as sensações de um beijo na boca.
 
Lembro quando meu pai me deu a missão de comprar algo pela primeira vez na vida. Eu devia ter uns seis anos de idade e precisaria caminhar uns três quarteirões, com uns trocadinhos na mão, para comprar fubá. Emocionada com a responsabilidade, acabei por perder o que, hoje, valeria uns três reais. Voltei apreensiva e anunciei: “Pai, perdi o dinheiro!”.

Ele, pacientemente, me deu um novo valor e lá fui eu. Qual foi minha surpresa ao olhar as minhas mãos e constatar que, novamente, havia perdido os trocados. Até hoje meu pai conta que se lembra de mim, rosto suado e desgrenhada, dizendo baixinho: “Perdi o dinheiro de novo!”. Eu havia fracassado naquela missão, mas teria a oportunidade de repeti-la muitas e muitas vezes depois, sem prejuízos.

O bonito da vida é que, até o final dela, continuaremos a nos surpreender com “a primeira vez” de algo. Na infância, aprendemos andar de bicicleta. Recebemos uma missão e a executamos com algum desembaraço. Somos alfabetizados, damos nosso primeiro beijo, temos nossa primeira relação sexual, saímos da casa dos pais para todo sempre, temos o primeiro filho, experimentamos o primeiro amor, amargaremos a primeira desilusão de várias outras que virão. Sentimentos que parecem ter sido colados à nossa alma, já que caminham conosco por toda vida. Quando lembramos deles sorrimos, marejamos os olhos, vem um frio na barriga ou uma sensação angustiante. Ficam ali, cimentados ao que somos, nos guiando em outras primeiras vezes.
 
Na infância, menos cientes dos perigos do mundo, nos jogamos pelo bel prazer das descobertas. Porém, conforme crescemos, pensamos um pouco mais antes de experimentar algo novo: Será que vale o risco? Vou me machucar? O que ganho com isso? Já não tenho mais idade.  E mesmo que de maneira consciente possamos evitar algumas experiências inesperadas, a vida vem e nos mostra que nem sempre guiaremos o nosso destino. Experimentaremos a morte de alguém amado, nos veremos diante do desafio de mudar os rumos da vida profissional, nos apaixonaremos por alguém completamente diferente do tipo que dizíamos ser o nosso, moraremos sozinhos, quando na verdade, o plano sempre foi dividir um teto com alguém.
 
Então, por escolha ou imposição, infinitas primeiras vezes cruzarão nossos caminhos nos impondo descobertas sobre nós mesmos e o mundo. Experiências que nos mostrarão o que somos capazes de criar, recriar e adaptar, com medo ou não.


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Comentários
Flávia Franco
Amei, e assim mesmo, a primeira vez de muitas nós não esquecemos.
Oriana Freire de Barros
Muito verdadeiro. É isso que a vida é, um eterno começar e recomeçar, uma sucessão de primeiras vezes
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