Decorei cada sarda das costas dela. Sabia o que ela ia dizer quando franzia a testa. Cor preferida: o verde. Melhor o dia do que a noite. Dois dedos de café e um cigarro às quatro da tarde. Ouvia "Let it be" quando estava triste e "Satisfaction" nos dias de alegria. Ela era complexa para os outros. Mas, para mim não!
Se o cabelo estava pintado de vermelho ou se ela aparecia com o corte Joãozinho, eu só podia supor que estava cansada da mesmice. Seu corpo era um cartaz, um muro de avisos com palavras desenhadas. Uma tatuagem de gatinho no antebraço esquerdo, quando na vida ela nunca teve um bichano.
Se ela queria caprichar no modelito bastava usar o All Star laranja, o vestido com estampa de poá e o chapéu Panamá. Mas, se precisava de seriedade, vestia um blazer preto, usava óculos de aro grosso e um coque desajeitado. Rebelde por fora, mas menina por dentro.
Na sua casa de decoração vintage, voavam as penas das asas que algum desavisado tentou cortar. E nas janelas vasos de cactos mortos por meses a fio sem uma única rega.
Não queria ser mãe e nem esposa, mas planejava adotar cinco cachorros quando completasse 40 anos. Os nomes dos bichos já estavam escolhidos: Platão, Aristóteles, Kant, Rousseau e Beauvoir. Quem sabe assim, ela aprenderia a filosofar!
Nos dias que eu queria irritá-la a chamava de margarida, e ela acreditava que assim, eu estava a chamando de feia. Mal ela sabia, que eu lá com os meus botões, a apelidava assim por considerar a margarida uma flor de beleza simplória que transforma os jardins e as festas de casamento em locais de pura leveza! Eu devia ter dito isso a ela, mas não deu tempo! Podia ter contado, sem o menor pudor, que ela era a margarida da minha vida! Mas, ela me deixou num dia qualquer. Mas, ela me deixou num dia qualquer – com meu coração idiota – e as lembranças dos cactos secos, das penas caídas, dos discos de vinil comprados em sebos.